O dia da Vantagem Marmota Auferida
- rafaelk2077
- 12 de jul. de 2018
- 8 min de leitura
Dúvidas, conceitos incorretos e interpretações equivocadas
“Feitiço do tempo” é um clássico dirigido por Honald Ramis, que passou nos cinemas em 1993. O mote do filme é que um mesmo dia (“o dia da Marmota”) se repete indefinidamente, como se não houvesse amanhã, como se houvesse uma armadilha temporal. Conquanto pudesse parecer enfadonha, a inusitada situação dava a oportunidade para que o ator principal (Bill Murray) aperfeiçoasse suas respostas e reações diante dos mesmos fatos e assuntos, até conquistar seu amor, Andi MacDowell. Esse interessante enredo se encaixa bem com o tema do presente artigo.
Isto porque na 124a Sessão Ordinária de Julgamento no Cade (SOJ/Cade), no dia 23/05/201, o Cons. Paulo Burnier se debruçou formalmente, pela primeira vez, acerca do assunto vantagem auferida, em voto vogal proferido no caso do cartel do sal[1], cujo relator foi o Cons. João Paulo de Resende[2]. Assim como o filme, portanto, apesar de vantagem auferida ser tema recorrente em meus textos, votos e apresentações há três anos, vale repetir, mais uma vez, o que venho argumentando sobre o tema, pois, resta claro, diante das colocações do Cons. Burnier, que eu não tenho me comunicado como deveria. Há ainda dúvidas, conceitos incorretos e interpretações equivocadas. Peço desculpas pelas falhas, rogo paciência com mais um texto sobre o assunto e agradeço a abertura ao debate.
Ato contínuo, na 125a SOJ/Cade, no dia 13/05/2018, quando eu ia apreciar os comentários do Cons. Burnier, calhou de haver um inédito pedido ao Cade de revisão do valor da contribuição pecuniária do TCC feito com a empresa Nakata. Como esta solicitação, coincidentemente, reforçava minhas observações às ponderações do Cons. Burnier, optei por fazer um voto juntando a não homologação ao requerimento em tela[3] (acompanhando o Conselho) e as considerações ao Cons. Burnier.
Como meu voto tem 10 páginas e quiçá possa ser entediante a sua leitura, o presente texto resume seus pontos mais relevantes. Para aqueles que desejam ter uma compreensão mais aprofundada, sugiro a leitura de ambos os votos: o do Cons. Burnier e o meu, pois explico cada item fazendo menção aos parágrafos dele. Segue, assim, um bosquejo do voto. Espero ser didática e, ao final – assim como Bill conquistou Andi –, seduzir você, leitor. A ver.
A começar pelo pedido de revisão de TCC, que revelou que as multas e as contribuições pecuniárias estipuladas têm sido logradas de forma incerta, devido à elevada flexibilização nos critérios do artigo 37. Se não fosse por isso, dito requerimento não teria sido feito. De fato, essa solicitação foi motivada porque a Nakata, comparando ex-post a sua contribuição pecuniária com as que seus competidores pagaram, concluiu que desembolsou relativamente mais.
Conquanto este seja o primeiro pedido de revisão (para baixo, claro!) de valor de TCC, não é a primeira vez que se observa multa não isonômica entre os participantes de um mesmo cartel. De fato, a problemática tem sido recorrente, como ficou evidenciado no cartel de memória DRAM, em que foram interpostos inúmeros embargos de declaração por este mesmo motivo. Incongruências entre os valores a serem desembolsados por membros de um mesmo cartel ou entre carteis é o que mais se observa, especialmente em sede de TCC.
Flexibilizar o artigo 37, logo, pode ser favorável para a empresa em um caso específico. Em equilíbrio geral e no longo prazo, contudo, estas flexibilizações não são convenientes. Afinal, a imprevisibilidade, logo, a insegurança jurídica, não são valores desejáveis para a política de TCC. De fato, é temeroso não ter regras gerais claras, mas normas casuísticas. É ruim para todos. No momento, desta forma, a política de TCC está frágil e imprevisível. O mencionado pedido, indiscutivelmente, revela esta vulnerabilidade. O benefício de se estimar a vantagem auferida/dano pelo cartel e, depois, entre cada membro, destarte, é garantir isonomia, previsibilidade e proporcionalidade. É a lógica que tenho proposto.
Com respeito às minhas considerações acerca dos comentários do Cons. Burnier, as sumarizo em 7 reflexões. Antes, porém, vale dizer que eu e o Conselheiro de Resende (respeitosamente chamados de “a minoria”) concordamos com o Cons. Burnier de que a parte final do artigo 37 é importante e deve ser respeitada. Este ponto é relevante, pois é a primeira vez que um membro da “maioria” (aqueles que divergem da minoria) faz esta ressalva.
A primeira reflexão concerne à interpretação equivocada de que a minoria está multando ilegalmente. Pelo contrário. A minoria entende que uma lei deve ser aplicada sempre e para todos, independentemente se o Juiz a considera oportuna ou não. A minoria, desta forma, nunca agiu contra a lei. Estimar pela vantagem auferida é possível mediante a aplicação estrita do artigo 37, não havendo ilegalidade, portanto. Além disso, eu, apesar de considerar pertinente ter um valor máximo de multa em qualquer esfera (não só administrativa), julgo que, pela leitura do inciso I de referido dispositivo, 20% só pode ser considerado como percentual máximo SE a vantagem auferida não puder ser estimada. Se puder, como a multa não pode ser inferior à vantagem auferida, então, a vantagem auferida passa a ser o patamar mínimo para a sanção, sem haver patamar máximo. Neste sentido, uma alteração no artigo 37 seria conveniente, ainda que o processo não seja trivial, pois o poder legislativo teria que apreciá-lo.
A segunda reflexão diz respeito às multas aplicadas a associações e sindicatos, cujos limites mínimo e máximo estão descritos no inciso II do artigo 37. Há dois erros conceituais. Como inexiste na lei indicação de como alcançar dito valor, não há fundamento legal para criticar o uso de qualquer metodologia para encontrar o montante entre ditos extremos (como criticou o Cons. Burnier quanto ao uso da vantagem auferida pela minoria). Além disso, o argumento da dupla contagem (multar a associação e os associados) não procede sob qualquer metodologia. Caso contrário, o Cade estaria cometendo uma imprecisão há pelo menos 20 anos. Não é o caso, pois.
A terceira reflexão se refere à interpretação errônea do que venha a ser vantagem auferida. Vantagem auferida é um conceito e não uma técnica ou método. A expressão diz que uma sanção deve basear-se no “faturamento com respeito ao mercado relevante (ou afetado) no período da conduta”. Se o percentual (que, em tese, é o sobrepreço) a ser aplicado sobre aquele faturamento será estimado por via econométrica, por via de um cálculo simples ou se será arbitrado por um percentual exógeno (como fazem as jurisdições benchmark), não importa por ora. O que tenho defendido é que: primeiro haja uma compreensão de que usar o conceito da vantagem auferida é razoável; segundo, de que, havendo um consenso pelo uso de dito conceito, se escolha uma certa metodologia e; terceiro, diante da metodologia eleita, seja elaborado um Guia de Sanções
Pecuniárias. Note, portanto, que há uma linha lógica de três etapas. Neste momento, assim, o método a ser usado (para encontrar dito percentual) e o Guia são menos relevantes, pois ainda se está na fase 1. O mais importante, assim, é que todos estejam conscientes de que usar o conceito da vantagem auferida faz sentido no âmbito do law and economics, até porque é o que fazem as mais renomadas autoridades antitrustes no mundo e é o proposto pela ICN.
O Cons. de Resende tem trazido o conceito vinculado a uma dada metodologia. Eu, em contrapartida, não tenho feito isso. Tenho trazido a importância de sancionar com base no conceito da vantagem auferida apenas, pois entendo que estamos ainda na primeira etapa. Como não foi definida uma metodologia pelo Cade e como não há um Guia de Sanção Pecuniária do Cade, uso os dados dos autos para estimar da melhor forma possível a vantagem auferida do caso em questão, expondo todas as hipóteses por mim usadas. Não é correto dizer, desta forma, que quero impor econometria nas estimações ou qualquer outra metodologia. Meu objetivo é ser democrática e, se todos estiverem de acordo com o conceito, escolher conjuntamente a metodologia possível, para, depois, elaborar o mencionado Guia.
A quarta reflexão concerne às jurisdições benchmark serem ricas, e que, por isso, estas não deveriam ser usadas como benchmark para o Brasil. Argumento inconcebível. De fato, o Cade, que pertence a um país de renda média, sempre teve estrutura pequena e isso nunca o impediu de galgar posições invejáveis com relação a seus pares, justamente por recorrer aos melhores exemplos para seguir seu próprio caminho. Além disso, ao analisar o que diz o item 9.9.2 do documento da ICN, não parece razoável traduzir “mercado afetado” como sendo “ramo de atividade”, mas sim “mercado relevante durante a conduta” – que é justamente o conceito da vantagem auferida. Segundo a ICN: “The alternative measure used by a number of jurisdictions is the illicit commercial gains obtained through the cartel conduct. (...)”, o que, mostra que, até no âmbito da ICN, o conceito da vantagem auferida é usado, restando claro que não só as jurisdições benchmarks usam o conceito da vantagem auferida, mas, também, aquelas que participaram da amostra da pesquisa da ICN.
A quinta reflexão concerne à crítica de que não se deve usar racionalidade econômica nas sanções pecuniárias. Como o conceito da vantagem auferida preserva a racionalidade econômica e é um conceito internacionalmente usado, a crítica não procede.
A sexta reflexão diz respeito à interpretação dos artigos 37 e 45 da Lei 12.529/11. Há 5 considerações a serem feitas: (1) a primeira concerne ao fato de que não se pode dar mais peso ao artigo 45 relativamente ao artigo 37 no tocante à expressão “vantagem auferida”, uma vez que o principal artigo sancionador é o 37 e não o 45, que é auxiliar ao 37; (2) a segunda diz respeito ao fato de que não se pode confundir “criticar os artigos sancionadores 37 e 45” (como a minoria tem criticado, pois ambos trazem incerteza) em “não os utilizar” (como se a minoria agisse ilegalmente); (3) a terceira refere-se à inferência incorreta de que a minoria usa o conceito da “vantagem auferida” como elemento único ou exclusivo quando da sanção pecuniária. Parâmetros dissuasórios e o artigo 45 sempre foram considerados; (4) a quarta se relaciona ao argumento falho de que os anos de duração de uma conduta são levados em consideração pela maioria ao aplicar as sanções, pois sabe-se que isso não ocorre; e (5) a quinta diz respeito à menção ao meu voto no caso do cartel de leite no Sul do país[4] pelo Cons. Burnier como contraexemplo de que não usei o artigo 45. Além de ter usado dito artigo, a flexibilização do artigo 37 ficou evidente quando o Conselho optou por seguir o voto vista do ex-Conselheiro Gilvandro cuja proposição de multa teve como base o lucro (em vez do faturamento) das empresas - aí sim, uma afronta inequívoca ao artigo 37 -, sem, contudo, ter sido questionado pelos demais membros do Conselho, excetuando-se o Cons. de Resende e eu.
A sétima e última reflexão diz respeito às escolhas do Cons. Burnier dos percentuais impostos para sancionar o caso julgado naquele dia, o do cartel do sal (19%, 16%, etc.). Como sempre, as escolhas se deram de maneira aleatória e casuística, que, a depender de cada juiz, poderia ter optado por outros percentuais. Como não há um Guia de Sanção Pecuniária e como não se estima pela vantagem auferida, o percentual acaba sendo aleatório, impreciso e subjetivo.
Em suma, como mencionado no voto do Cons. Burnier, segundo Carlos Maximiliano: “não se deve presumir que a lei contenha palavras inúteis, cabendo ao intérprete o contínuo esforço de atribuir significado aos termos da norma, distinguindo, ao máximo possível, as suas hipóteses de incidência”. É certamente o que a minoria tem feito para melhorar o status quo, não tratando como inútil o conceito de vantagem auferida previsto nos artigos 37 e 45. Como disse o ex-Cons. Alexandre Cordeiro: apenas 23% das sanções seguem os parâmetros estabelecidos no artigo 37. O resto é flexibilizado de alguma forma, o que demonstra que o artigo 37 não é razoável.
Desta forma – em mais um dia de Marmota sobre meus argumentos acerca da temática vantagem auferida e na expectativa de ter conquistado alguns corações – cabe reiterar mais uma vez os dois pontos que venho enfatizando há 3 anos: (1) o artigo 37 traz incerteza jurídica e deveria ser modificado pelo Congresso; e (2) o Cade e a comunidade antitruste deveria focar em coordenar três passos: (a) aceitar o conceito da vantagem auferida como sendo o mais apropriado para ser seguido no Brasil, em linha com o mundo; (b) dado (a), discutir qual seria a melhor metodologia a ser adotada, levando em consideração as idiossincrasias brasileiras; e, por último, (c) dados (a) e (b), elaborar um Guia de Sanções Pecuniárias para dar previsibilidade à metodologia adotada pelo Cade.
Que o feitiço do tempo auxilie na minha comunicação e “caleje a sensibilidade” (Machado de Assis) dos meus caros leitores.
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